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Direitos Humanos: quando a Justiça enxerga o aborto; debate mais racional

Embora uma em cada sete mulheres, de todas as classes sociais, tenha feito aborto no Brasil, conforme atestam dados oficiais, apenas a parte mais frágil desse contingente é processada como criminosa. O artigo 124 do Código Penal, que estabelece pena de um a três anos de reclusão para quem interrompe de forma voluntária a própria gestação, parece existir somente para rés com pouca escolaridade, que trabalham como empregadas domésticas, muitas com filhos e quase todas vivendo com namorados ou maridos.


Elas tomam a decisão com seus companheiros, submetem-se à clandestinidade na hora de comprar os abortivos, os usam conforme instruções escritas muitas vezes à mão pelo vendedor. Diante de uma complicação, vão ao hospital público, de onde saem indiciadas.


O perfil dessas mulheres e como chegam às mãos da Justiça, questões até então desconhecidas, foram reveladas por um estudo realizado pela Universidade de Brasília (UnB) e pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).


Intitulada Quando o aborto se aproxima do tráfico, a pesquisa analisou 10 processos judiciais e inquéritos policiais contra mulheres e vendedores de abortivos denunciados pelo Ministério Público do Distrito Federal entre 2006 e 2010. Recentemente, o trabalho ganhou aval científico, referendado pela revista Ciência & Saúde Coletiva, que prevê sua publicação em breve.


Entre as sete mulheres, todas moradoras do DF, indiciadas nos 10 processos analisados, 70% nasceram em cidades do interior do Norte ou do Nordeste e tinhamcompanheiro fixo. A escolaridade de nenhuma passa do ensino fundamental e as atividades desempenhadas vão de domésticas a funcionárias do comércio.


“Não há uma menina universitária ou de classe média. Elas não fazem aborto?”, indaga a antropóloga Debora Diniz, uma das autoras da pesquisa. Para a estudiosa, além da penalização da mulher menos favorecida do ponto de vista econômico e social, o estudo traz outro dado alarmante: a morte de duas delas. Segundo Debora, o dado precisa ser compreendido de maneira séria: “São duas entre sete, é uma taxa alarmante. Os processos revelam que elas morreram porque demoraram muito a procurar ajuda devido ao medo de serem denunciadas”.


Foi também o medo que levou Fabiana*, 33 anos, a sangrar sozinha, sem ajuda médica. Depois de tomar duas vezes o medicamento, sem conseguir finalizar o aborto, ela, há oito anos, pegou um empréstimo e foi para uma clínica fora de Brasília. “Eu não podia procurar um hospital. Querendo ou não, é um crime.


Tive que levantar dinheiro para conseguir outra alternativa”, conta a profissional da área de eventos, que já era mãe de um menino quando decidiu pelo aborto. “Estava em um namoro ainda recente, fiquei pensando como eu ia criar mais um filho, no quanto minha família ia me recriminar. Então, resolvi comprar o remédio. Procurei algumas amigas e logo consegui os comprimidos, que não surtiram efeito.”


Longe da meta
Na clínica clandestina, Fabiana recebeu o tratamento humanizado a que qualquer mulher que chega em uma emergência, depois de ter feito um aborto, tem direito. No Brasil, a média de curetagens por ano na rede pública é de 200 mil. O Ministério da Saúde não sabe dizer quantas são em pacientes que tiveram aborto espontâneo ou não.


Mas há um dado alarmante que as autoridades reconhecem. Anualmente, morrem 75 mulheres a cada 100 mil nascidos vivos. O índice está muito acima dos 20 óbitos preconizados como razoável pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Pior é que a taxa se mantém praticamente estável desde 2002, variando entre 72 e 75 mortes, registradas em 2007, dado mais atualizado do governo federal.


Para Helvécio Magalhães, secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, o aborto ilegal é um componente da mortalidade materna, mas não o principal. “Não há como termos certeza das razões das mortes devido ao problema da subnotificação. Entretanto, a hipertensão, a diabetes e a hemorragia correspondem ao grosso dos óbitos”, ressalta Magalhães.


Questionado sobre as chances reais de conseguir cumprir a meta do milênio, segundo a qual o Brasil deve chegar a 2015 com 20 mortes por 100 mil nascidos vivos, ele destaca que a pasta está “trabalhando duro com ações e investimentos maciços” na área. Magalhães afirmou, entretanto, que a descriminalização do aborto não está na agenda do governo federal. “Discutir o marco legal não nos interessa”, afirma.


Internação
Financiada pelo Fundo Nacional de Saúde, a Pesquisa Nacional sobre Aborto (PNA), levantamento mais completo sobre o tema no país, mostrou que 15% das mulheres entre 18 e 39 anos já realizaram aborto uma vez na vida.


Do total, 48% delas usaram medicamentos abortivos e 55% necessitaram de internação hospitalar por complicações. Não foram demonstradas diferenças significativas entre as religiões declaradas pela entrevistadas – 15% são católicas, 13% declararam-se evangélicas, 16% responderam ter outras crenças. O restante não tinha religião ou não respondeu.


Não é crime
Só duas situações descaracterizam o aborto como um crime: quando não há outro meio para salvar a vida da mãe ou quando a gravidez resulta de estupro.


Dados do Ministério da Saúde mostram um declínio no número de interrupções permitidas. Em 2008, foram 3.285, passando para 1.686 em 2010. (*) Nome fictício a pedido da entrevistada

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